quarta-feira, 10 de julho de 2019

Eu queria

"Eu queria que você conhecesse a alegria,
Então eu ri com você.
Eu queria que você se sentisse seguro,
Então eu estava lá por você.
Eu queria que você aceitasse os outros como eles são,
Então eu te aceitei como você é.
Eu queria que você não se envergonhasse das suas lágrimas,
Então eu não escondi as minhas.
Eu queria que você fosse corajoso,
Então eu deixo você me ver superando meus medos.
Eu queria que seu coração fosse tenro
Então eu te tratei com cuidado.
Eu queria que você seguisse seus sonhos,
Então eu deixo você me ver seguir os meus.
Eu queria que você fosse compassivo,
Então eu te mostrei gentileza.
Eu queria que você fosse generoso,
Então eu compartilhei livremente tudo o que eu tinha com você.
Eu queria que você vivesse em paz com os outros,
Então eu vivi em paz com você.
Eu queria que você se tornasse quem você deveria ser,
Então eu te dei asas e libertei você. ”

L.R.Knost

segunda-feira, 10 de junho de 2019

8 de fevereiro de 2019 - 1001 noites de amor



Foram 1001 noites entre 16 de maio de 2016 (nascimento do meu filho) e 08 de fevereiro de 2019.
Em nenhuma dessas noites eu estive longe dele na hora de dormir. Em nenhuma dessas noites eu descansei mais do que 6 horas seguidas. Na verdade passei cerca de 2 anos sem dormir mais do que três horas seguidas. O pai fez o impossível para chegar junto. Mas meu filho só quer saber de dormir comigo. Chega até a expulsá-lo do quarto. Aceitei a função pesada e exaustiva de ninadeira exclusiva.
1001 noites é um marco. Não por causa da história clássica, mas por causa da música do Pepeu Gomes, que escolhi como mantra de esperar o sono do pequeno humano. Eu cantarolo (ou repito mentalmente): "Só quero você e mais nada. Só quero você e mais nada"…
Um paradoxo imenso, pois querer estar com meu filho e "mais nada" é um desafio. Abrir mão de um universo de distrações tecnológicas. Da vontade de fazer xixi, de comer, beber água, dormir, gritar e surtar. Para apenas estar ali esperando que ele adormeça. O que pode acontecer entre 5 e 90 minutos. 
E eu visualizei tantas vezes essa noite 1001. Eu imaginava que já teria reconquistado oito horas de sono seguidas. Porém a realidade é um cadinho diferente: o pequeno está com dor de barriga e tem dormido bem mal. Essa noite eu acordei às três da manhã e não dormi mais. Isso que dá criar expectativas: é frustração garantida!
Aceitei e vivi tudo isso. Todos os últimos 1001 dias.
Mas confesso que bem lá no fundo, gostaria que essa "vida humana" me concedesse uma noite completa de sono.
Eu até caí na ilusão de ler sobre "treinamento de sono" de bebês, já me consultei com "especialistas" e até paguei 600 reais na consulta de um pediatra badalado da internet. Nada resolveu.
A verdade é que todo esse processo fez cair a grande ficha de que não existe fórmula pronta pra nada na vida. Nada. A gente gosta de acreditar que tem, que é só seguir o passo-a-passo de alguém que vai dar tudo certo. E só vivendo para perceber que certas coisas não mudam na velocidade que gostaríamos.

E só o mantra do Pepeu e todo seu paradoxo pra suportar tão pouco sono e tão puro amor.

O dia em que parei de dizer para minha filha "anda logo". Por Rachel Macy Stafford

Quando você leva uma vida distraída, cada minuto precisa ser contabilizado. Parece que você está sempre riscando alguma coisa da lista, olhando para uma tela ou correndo para o próximo compromisso. E por mais que tente dividir seu tempo e atenção de um jeito ou de outro, por mais deveres que tente equilibrar ao mesmo tempo, o dia nunca dura o suficiente para correr atrás do prejuízo.

Essa foi minha vida durante anos de correria. Meus pensamentos e minhas ações eram controlados por alertas eletrônicos, toques de celular e agendas abarrotadas. Apesar de cada gota do meu sargento interior me mandar chegar a tempo para cada compromisso em meus dias superlotados, eu não conseguia.

Acontece que seis anos atrás, eu fui abençoada com uma filha calma e despreocupada, daquelas que sabe relaxar um pouco e aproveitar o mundo.

Quando eu precisava já estar fora de casa, ela escolhia uma bolsa e uma tiara com todo o tempo do mundo.

Quando precisava estar em algum lugar cinco minutos atrás, ela insistia em colocar seu bichinho de pelúcia na cadeirinha do carro e apertar o cinto de segurança.

Quando eu precisava pegar um almoço rápido no Subway, ela queria conversar com a velhinha que parecia sua avó.

Quando eu tinha 30 minutos para dar uma corridinha, ela queria que eu parasse o carrinho para acariciar todos os cachorros do caminho.

Quando eu tinha um dia cheio que começava às seis da manhã, ela pedia para quebrar os ovos e mexê-los bem devagarinho.
Minha filha calma e despreocupada foi uma dádiva para minha natureza workaholic e frenética, mas eu não enxergava isso. Não, nem de perto.

Quem leva a vida distraída está sempre usando binóculos, sempre de olho no próximo item da agenda. E tudo que não pode ser riscado da lista é pura perda de tempo.

Sempre que minha filha me forçava a desviar do meu cronograma, eu pensava “Não temos tempo para isso”. Por consequência, as duas palavras que mais dizia para minha pequena amante da vida eram: “Anda logo”.

Eu começava minhas frases com elas.
Anda logo, vamos chegar atrasados.

Eu terminava minhas frases com elas. 
Vamos perder tudo se você não andar logo.

Eu começava meu dia com elas.
Anda logo e come esse café da manhã de uma vez.
Anda logo e vai se vestir.
Eu terminava meu dia com elas.

Anda logo e vai escovar os dentes.
Anda logo e vai dormir.
E apesar das palavras “anda logo” não fazerem nada para acelerar minha filha, eu as repetia ainda assim. Talvez até mais do que aquelas outras palavrinhas, “eu te amo”.

A verdade dói, mas a verdade cura... e me deixa mais próxima da mãe que quero ser.

Até que chegou o dia fatídico e tudo mudou. Havíamos acabado de buscar minha filha mais velha do jardim de infância e estávamos saindo do carro. Como a menor não estava saindo rápido o suficiente, a mais velha disse para a irmãzinha: “Você é tão lenta”. E então ela cruzou os braços e soltou um suspiro de frustração. Foi como me ver no espelho, e a sensação foi horrível.

Eu estava fazendo bullying com minha própria filha, pressionando e apressando uma criancinha que simplesmente queria aproveitar a vida.

Meus olhos se abriram. Eu enxerguei os danos que minha existência apressada estavam causando em minhas duas filhas.

Minha voz tremeu, mas eu olhei nos olhos da minha pequenininha e disse: “Desculpa por estar fazendo você se apressar tanto. Eu adoro que você faz as coisas com calma e queria ser mais parecida com você”.

Minhas duas filhas pareceram igualmente surpresas com minha admissão dolorosa, mas o rosto da mais novo tinha um brilho inconfundível de validação e aceitação.

“Prometo que vou ser mais paciente a partir de hoje”, eu disse, abraçando minha menininha de cabelo cacheado, que agora sorria com a promessa da mãe.

Foi fácil riscar a expressão “anda logo” do meu vocabulário. Mais difícil foi adquirir a paciência para esperar minha filha mais descansada. Para ajudar nós duas, comecei a dar a ela mais tempo para se preparar quando tínhamos que ir a algum lugar. Às vezes, ainda assim chegávamos atrasadas. Eram os momentos em que eu repetia para mim mesma que só teria mais alguns poucos anos de atraso, enquanto ela fosse pequena.

Quando saíamos para caminhar ou íamos ao mercado, eu deixava minha filha determinar o ritmo. E quando ela parava para admirar alguma coisa, eu tentava esquecer minha agenda e simplesmente assistia o que ela estava fazendo. Vi expressões no rosto dela que nunca tinha encontrado antes. Estudei as covinhas em suas mãos e o jeito que seus olhos se enrugavam quando ela sorria. Vi o modo como as outras pessoas reagiam quando minha filha parava para conversar com elas. Vi o modo como ela encontrava insetos interessantes e flores bonitas. Ela era uma Percebedora, e logo descobri que os Percebedores são dádivas raras e belas. Foi quando finalmente entendi que ela era um presente dos céus para minha alma frenética.

Fiz minha promessa de desacelerar quase três anos atrás, ao mesmo tempo que comecei minha jornada para me livrar das distrações diárias e entender o que importa de verdade. E viver em um ritmo mais calmo ainda exige um esforço consciente. Minha caçula é um lembrete vivo de por que preciso seguir tentando. Na verdade, poucos dias atrás ela fez uma coisa que me lembrou disso tudo de novo.

Nós duas havíamos saído de bicicleta para visitar uma banca de raspadinhas enquanto estávamos de férias. Depois que comprei o doce gelado para minha filha, ela se sentou em uma mesa de piquenique e ficou admirando a torre gelada que tinha na mão.

De repente, ela me olhou com o rosto cheio de preocupação. “Preciso correr, mamãe?”

Eu quase chorei. Talvez as cicatrizes de uma vida apressada nunca sumam por completo, pensei com tristeza.

Quando minha filha levantou os olhos, esperando para saber se poderia comer a raspadinha com calma, eu sabia que tinha uma escolha. Eu poderia ficar ali sentada, triste, pensando sobre o número de vezes em que apressei a vida da minha filha... ou poderia celebrar o fato de que hoje estou tentando ser diferente.

Escolhi viver no dia de hoje.

“Você não precisa se apressar. Demore o quanto precisar”, eu disse calmamente. Seu sorriso se abriu imediatamente e seus ombros relaxaram.

Nós ficamos sentadas lado a lado, conversando sobre coisa que meninas de seis anos que tocam ukulele gostam de conversar. Houve até alguns momentos em que ficamos em silêncio, simplesmente sorrindo uma para a outra e admirando a paisagem e os sons ao nosso redor.

Achei que minha filha ia comer a raspadinha inteira, mas quando chegou no finalzinho, ela estendeu uma colherada de cristais de gelo e suco docinho para mim. “Guardei a última mordida para você, mamãe”, minha filha disse orgulhosa.

Eu deixei o gelo gostoso matar minha sede e percebi que tinha feito o melhor negócio de toda a minha vida.

Eu dei à minha filha tempo... e, em troca, ela me deu sua última mordida e me lembrou que tudo é mais doce e o amor é mais fácil quando paramos de correr pela vida.

Seja...

Comendo raspadinha

Apanhando flores

Apertando os cintos de segurança

Quebrando ovos

Achando conchas na praia

Observando joaninhas

Passeando na calçada

Não vou dizer “Não temos tempo para isso”, porque é basicamente o mesmo que dizer “Não temos tempo para viver”.

Fazer uma pausa para aproveitar as alegrias simples do cotidiano é o único jeito de viver de verdade.

(Confiem em mim, eu aprendi com a maior especialista do mundo na área de como ter uma vida alegre e feliz.)


* O texto foi publicado originalmente no blog Hands Free Mama, de autoria da professora norte-americana Rachel Macy Stafford 

terça-feira, 6 de março de 2018

Anda logo

https://revistacrescer.globo.com/Familia/Rotina/noticia/2013/12/o-dia-em-que-parei-de-dizer-anda-logo.html


Bebê Transmutador

Seu bebê é um bebê. 

O que é tão óbvio, quase não é entendido. 
Dizer que um bebê é só um bebê, significa dizer que ele não irá dormir a noite toda. Que ele não irá querer outro colo se tiver sua mãe por perto. Significa que ele não irá querer sair do peito. E também que não irá querer dormir longe da sua base, que é a mãe.

Não, a imensa maioria dos bebês não irá dormir a noite toda. Aceite isso. Sabe esses métodos "nana nenê" e afins? Eles são cruéis. Eles são contra a natureza. Sabe porque as mães sofrem quando usam esses métodos, ao ouvir seu bebê chorar do outro lado da porta? Porque não faz parte da natureza uma mãe não atender o filhote. Não é natural negar consolo à própria cria. 
Quando uma fêmea de algum mamífero rejeita os filhotes, todo mundo entra em parafuso pra tentar fazer a mãe aceitá-lo de volta, amamentá-lo e aconchegá-lo. Porque o filhote NÃO SOBREVIVE longe da mãe. Na espécie humana, quando uma mãe rejeita o chamado de um filho, isso vira best seller e teoria. E ela é uma mãe bem sucedida.

Mas o problema não está no bebê que não dorme várias horas. O problema não está no bebê que não sai do peito. O problema jamais será o bebê que só se acalma na presença e colo da mãe. O problema serão as EXPECTATIVAS que os adultos têm sobre bebês. 

O problema é do adulto que não aceita o bebê como ele é: um bebê. E inventam formas de acalmar o bebê fora do colo, inventam remédios pra supostas dores, prescrevem leites que substituam o leite da mãe indiscriminadamente. O significado disso, pra mim, é claro: grande parte das pessoas não estão prontas pra chegada de um bebê e tudo que isso significa.

Gente, é insano. Eu sei. A privação de sono é de destruir. A falta de tempo é desesperadora. A demanda é surreal. 

Mas eu tenho uma sugestão pra você manter a sanidade mental: converse com outras mães. 

Existem grupos de mães no face (e na vida real) maravilhosos, onde o simples fato de você desabafar sua realidade e rotina exaustiva, já te ajudam a aceitar que é assim pra todo mundo... E que vai passar. 

Guarde, também, isso no coração: 
V A I P A S S A R. 

Não conheço nenhum pai ou mãe que reclama do filho de 20 anos que acorda pra mamar de madrugada. Que não sai do colo. Que não quer brincar com ninguém além dos pais. Simplesmente porque isso é coisa de bebê. E enquanto nossos filhos forem bebês, assim será. 

Em vez de pensar em alternativas pro seu bebê dormir a noite toda no quarto dele, pense em formas de vocês dormirem melhor juntos. Em vez de comprar chupetas pra ele se acalmar fora do peito, leia sobre a importância do leite materno em livre demanda pra regulação do hormônio do stress e do sono do bebê. A natureza é perfeita: o hormônio que regula o sono do bebê é excretado no leite materno justamente durante a madrugada. Quanto mais o bebê mama de madrugada, mais ele aprende sobre padrões dia-noite. 

Por favor, não deixe seu bebê chorar longe de você para que "aprenda" a ser independente. Ele jamais será, enquanto for um bebê. Não é que ele QUER você, é que ele PRECISA de você. 

Eu sei que no fundo, TODAS as mães querem simplesmente estar com seus filhos. Dar colo ilimitado. Amamentar sem olhar o relógio. Dormir agarradinha neles. O problema são OS OUTROS. São os outros dizendo "colo demais deixa mimado", "esse leite não tá sustentando", "dormir junto deixa dependente". 

Por isso tudo, quando seu bebê nascer, silencie a voz dos outros e escute seu coração. Esqueça toda e qualquer teoria. Não tente repetir a experiência da maternidade alheia. Olhe - mas de verdade - pro seu bebê e tenha a sabedoria de entender suas necessidades, e a coragem para atendê-las. 

Seu bebê será um bebê apenas por um pouco de tempo. Acolha e receba esse amor. Permita-se ser a mãe que seu filho precisa e a mãe que você deseja. Nunca mais você será tão amada e tão necessária.

Em breve, ele acenará com uma mãozinha pequena dizendo "tchau, mamãe", e sairá, sem nem olhar pra trás. E você fechará a porta e ficará livre em casa, sem nem ao menos saber o que fazer com essa liberdade. Porque é bom sim ser livre, mas melhor ainda é ser tão amada.

Palavras de uma mãe, que acabou de fechar a porta. 


(Bruna Estrela)

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(1972)

Marina Colasanti
 nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

Toca Raul!


Toca Raul! Kid Vinil fala sobre os 20 anos sem Raul Seixas
Sexta, 21 de agosto de 2009, 12h31 Atualizada às 12h32
Kid Vinil Especial para o Terra
Talvez um dos maiores legados de Raul Seixas seja esse jargão "Toca Raul!", isso é uma febre desde a década de 80. Em qualquer situação constrangedora ou não, sempre pinta um engraçadinho gritando "Toca Raul!". Lembro que até no meio de show internacional, alguém na platéia soltava o jargão entre uma música e outra e acabava virando uma piadinha. Se há uma falha durante uma discotecagem, logo surge o engraçadinho gritando "Toca Raul!". E tem também aqueles que falam sério durante os shows, pois são fãs de Raul Seixas. Brincadeira ou não esse jargão será eterno.
Mas, o legado de Raul Seixas após 20 anos de sua morte vai muito além disso. Certa vez ouvi Gilberto Gil dizendo que Krig-Há, Bandolo! é um dos melhores discos do rock brasileiro. Concordo plenamente com a afirmação de Gil, o disco lançado em 1973 foi o primeiro álbum solo de Raul Seixas com seu parceiro Paulo Coelho. Nele estava seu primeiro grande sucesso Ouro de Tolo, uma música que tocou à exaustão em todas as rádios do país naquela época.
Recentemente Nasi, o ex-vocalista do IRA!, fez uma releitura de Krig-Há-Bandolo! num show especial que ele apresentou na Virada Cultural de São Paulo. A música de Raul Seixas influenciou bandas famosas dos anos 90, como Raimundos e Chico Science, por exemplo.
Em 1973 Raul Seixas criava a Sociedade Alternativa e durante seus shows de lançamento do LP Krig-Há-Bandolo! foi distribuído um gibi contendo um manisfesto, que eu transcrevo abaixo.
O texto que segue está no manifesto/gibi A Fundação Krig-Ha, distribuído no primeiro show de Raul em SP, em 1973. Escrito por Raul e Paulo Coelho, entre outras pessoas, esse manifesto lança a ideia de Sociedade Alternativa. No ano seguinte, todas as cópias desse manifesto seriam recolhidas pela Polícia Federal e queimadas como "material subversivo". Raul foi preso e torturado pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e é "convidado" a se retirar do país, retornando ao Brasil pouco mais tarde devido ao sucesso de seu disco Gita. Veja abaixo a transcrição do texto do manifesto:
* Prefácio - Nós vos saudamos, Maria. Nós Vos Saudamos José. E nós saudamos os artistas brasileiros que tiveram o silêncio do resto do mundo quando seus trabalhos e seus corpos foram censurados, mutilados desaparecidos.
* Manifesto:
1 - O espaço é livre. Todos têm direito de ocupar seu espaço.
2 - O tempo é livre. Todos têm que viver em seu tempo, e fazer jus às promessas, esperanças e armadilhas.
3 - A colheita é livre. Todos têm direito de colher e se alimentar do trigo da criação.
4 - A semente é livre. Todos têm o direito de semear suas ideias sem qualquer coerção da INTELEGENZIA ou da BURRICIA.
5 - Não existe mais a classe dos artistas. Todos nós somos capazes de plantar e de colher. Todos nós vamos mostrar ao mundo e ao Mundo a nossa capacidade de criação.
6 - "Todos nós" somos escritores, donas-de-casa, patrões e empregados, clandestinos e caretas, sábios e loucos.
7 - E o grande milagre não será mais ser capaz de andar nas nuvens ou caminhar sobre as águas. O grande milagre será o fato de que todo dia, de manhã até à noite, seremos capazes de caminhar sobre a Terra.
* Saudação final do 11º manifesto:
- Sucesso a quem ler e guardar este manifesto. Porque nós somos capazes. Todos nós, todos nós somos capazes.
Escrito por: Raul Seixas, Paulo Coelho, Sylvio Passos, Christina Oiticica, Toninho Buda, Ed Cavalcanti
* Kid Vinil é cantor, DJ, radialista, divulgador musical e apresentador de TV e autor do livro 'Almanaque do Rock' (Ediouro)
Especial para Terra